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Post 07/04/2023: Psicanálise e amor

Memória

Amar o perdido 

Deixa confundido 

Este coração. 

Nada pode o olvido 

Contra o sem sentido 

Apelo do Não. 

As coisas tangíveis 

Tornam-se insensíveis 

À palma da mão. 

Mas as coisas findas, 

Muito mais que lindas, 

Essas ficarão.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro Enigma. Rio de Janeiro: Record, 1991.

Na primeira estrofe do poema, “amar o perdido” indica um processo ilógico de amar o que já constatou que foi perdido, mas como nem o amor nem as condições intrapsíquicas que regem o conflito psíquico entre os desejos e a defesa, entre o amor e o ódio, conhecem a lógica, essa frase faz todo sentido. Em especial, quando traz consigo a iminência de um “confundido coração” que demarca, acima de tudo, o conflito psíquico que governa a nossa constituição.

Na psicanálise, compreendemos o amor como sendo o investimento libidinal que despendemos ao outro e esse investimento não acontece à revelia da nossa história libidinal, mas é marcado pela identificação com as nossas relações primárias de amor. Para compreendermos as relações amorosas precisamos dar sempre primazia ao passado e às primeiras relações amorosas que fizeram os caminhos por onde percorrerá a pulsão sexual em busca de um objeto de satisfação. “A pulsão tem esta característica: não abandonar nenhum objeto de satisfação que um dia já lhe trouxe satisfação” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 10).

Nesse sentido, o objeto de amor de que Drummond nos fala foi perdido, mas ele sempre esteve – e estará presente. Afinal, se somos constituídos pelas identificações que fazemos ao longo da vida e são as relações amorosas primárias que determinam as nossas relações amorosas secundárias, então o objeto de amor pode até sair do nosso alcance, mas nunca ser completamente perdido, pois somos seres colonizados pelo afeto do outro. Somos seres habitados por algo estrangeiro a nós mesmos. “O amor seria a busca de apaziguamento deste incômodo interno” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 19). Nesse caso, toda relação amorosa secundária seria uma espécie de reabertura da situação originária, marcada pelo amor dos nossos pais e pelos interditos edipianos, “em um sentido mais estrito do Complexo de Édipo que designa uma estrutura fundamental das relações interpessoais e o modo como a pessoa aí encontra o seu lugar e se apropria dele” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2016, p.72).

Nós somos habitados pelo outro desde muito cedo, a nossa sexualidade é constituída antes mesmo que a sexualidade biológica, endógena, venha habitar nosso corpo no florescer da puberdade. Por sexualidade, Freud compreende não a sexualidade genital, mas a colonização do corpo pelos afetos do outro, dos nossos cuidadores. Nesse sentido, a sexualidade humana é, antes de tudo, intersubjetiva e as nossas escolhas de objeto de amor no futuro são marcadas pelos excessos pulsionais que constituem o investimento libidinal dos nossos cuidadores. Resta-nos saber como dar limite e contenção a esse excesso pulsional que nos constitui. 

Segundo Freud, “é o cuidado da mãe que implantará a sexualidade na criança” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 15). Essa sexualidade implantada na criança é o que Freud nomeará como pulsão. “De um ponto de vista psicanalítico, a sexualidade é perversa e polimorfa, pois estará sempre apoiada nas zonas erógenas do corpo – a pele, os ouvidos, o ânus, a boca, os olhos, o olfato” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 16) –, os pontos de contato que o adulto tem como o bebê e que geram excitação. Afinal, todo o corpo está regulado pelo Princípio do Prazer (Lust Prinzip) e é ele que organiza a ambiguidade entre o amor e o ódio.

Freud afirma em “Psicologia das massas e análise do eu” datada de 1921 que “a psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa” (FREUD, 2011, p. 60). Afinal, como as nossas primeiras identificações se constituem e nos constituem? Como elas contribuem para determinar as nossas escolhas de objetos de amor?

A proposta da psicanálise é que por mais proibido que seja um objeto de amor, nós sempre reencontraremos com ele. Freud afirmou que “o encontro com o objeto é, de fato, um reencontro” (FREUD, 2016, p. 143). “Quando encontramos um objeto de amor, realmente reencontramos o objeto das origens. O encontro com o objeto reativa esse tempo originário. Não é por acaso que as relações amorosas são ambivalentes” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 22), marcadas pelo amor e pelo ódio, pela negação de assumir uma situação antropológica originária da passividade depois da consolidação do narcisismo e pela necessidade de apaziguar esse estrangeiro que habita em nós possibilitada, pelo reencontro com o objeto de amor proibido, mas nunca completamente perdido. “Esse objeto originário só ganhou um nome na realidade, só ganhou uma tradução” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 23), mas continua sendo o estrangeiro que nos habita e que deixou os rastros de seu inconsciente em nós. “A pessoa da minha vida é, realmente, o objeto reencontrado no inconsciente. As relações amorosas reabrem a situação originária, para o bem e para o mal” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 23).

Nesse sentido, portanto, podemos falar que “identificação, narcisismo e amor são fenômenos inseparáveis” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 25), pois não podemos separar nossos desejos da situação que os constituiu. Por isso, é válido ainda ressaltar que “nenhuma tradução é capaz de conter todo o excesso pulsional que insiste em retornar” (BELO & REIGADO, 2010, p. 67), onde reside o aspecto trágico da repetição, a condição sisifiana da existência, seguida não apenas pelo imperativo da repetição, mas pelo imperativo do conflito entre defesa e desejo que nos constitui.  As perguntas que surgem e permanecem sem respostas são: Afinal, somos capazes de amar o outro em sua radicalidade? De fato amamos o objeto e toleramos suas diferenças ou o amamos apenas por uma identificação narcísica ou anaclítica, por apoio? Se não é possível relacionar-se com o objeto senão através das nossas fantasias e elas nos guiam e determinam o que somos e como amamos, que possamos criar novas formas de relacionar com o outro na certeza desse reencontro, que não negue, através do ódio, a existência do outro, que não o apague completamente. “Que o encontro criativo e amoroso seja o lugar de, simultaneamente, deixar-se inventar pelo outro, inventar-se e inventar o outro” (BELO, Amar não é uma aposta). Pois, como nos adverte Freud em “Introdução ao narcisismo” de 1914: “Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas afinal é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar” (FREUD, 2010, p. 29). Sendo assim, podemos descrever o amor de duas formas: “como a permanência de experiências pretéritas no presente e como a impotência do eu frente ao que acontece nas relações amorosas” (BELO & MAZARGÃO, 2011, p. 13). Não são vãs, portanto, as palavras finais de Drummond: “Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”.

psicarolffguimaraes

Psicóloga clínica CRP 04/66547 Atendimento online e presencial em BH  Testemunhando a transformação de vidas e narrativas.

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