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Post 07/04/2023: As tessituras do inconsciente na cena psicanalítica: uma escrita do (im)possível

“Escrever é quebrar o laço que une a palavra a mim mesmo.” Maurice Blanchot

Assumir que o inconsciente se tece de alguma forma na cena psicanalítica já nos coloca diante de um enigma que mais se cifra do que decifra. Afinal, não se trata de como ler o inconsciente a tarefa da psicanálise, mas sim de assumir o inconsciente enquanto uma leitura não do possível, mas do impossível de se representar, no ponto de real que o sustenta e o arrebata, ou seria arrebenta? Diante do regime do sublime que convoca para si mesmo a possibilidade do contraditório, o que nos resta do encontro ou desencontro com esse não-lugar chamado inconsciente, que aqui o chamaremos por vezes de texto, de livro, de carta, enfim de uma escrita do impossível? A intenção aqui é possibilitar uma leitura mais do que um modo de ler o inconsciente que se encena no setting analítico como um modo do sujeito se escrever, mesmo quando parece que não é de palavras que precisamos, é de imagens, mesmo quando não é de imagens, é de sons, ruídos, que são difíceis serem captados pelas gramáticas do audível, visível e legível. Talvez seja no ponto de fracasso dessas gramáticas de aproximação do real que podemos reconhecer a psicanálise como esse “pequeno fragmento de verdade”, expressão que Freud (1982, p. 505) usa para nomear a psicanálise em uma carta a Stephan Zweig no fim de sua vida.

O inconsciente estético, para usar uma feliz expressão de Jacques Rancière (2009), na cena psicanalítica talvez seja um caminho para entender esse ponto de fracasso da transmissão de um modo de ler o inconsciente. Afinal, como afirma a crítica literária Shoshana Felman (2012, p. 21), ao falar de Paul De Man, “todos os textos narram a impossibilidade de ler como ponto de fracasso a partir do qual eles demandam ser lidos, a partir do qual inscrevem um paradoxal imperativo de leitura”. Seria nesse paradoxo que habitamos a cena analítica? O que se dá na cena analítica muitas vezes é o que Rancière (2009, p. 41) nomeia como palavra muda e surda, que a um só tempo reclama por decifração e reescrita da palavra nos corpos e por outro exige “uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo”, sem, contudo, resolver o enigma.

Freud (1917/1982, p. 370) afirmou numa carta a Groddeck que “o inconsciente é certamente o verdadeiro intermediário entre o somático e o psíquico, talvez seja o missing link tão procurado”. Lacan (1956/1985, p. 139), por sua vez, dizia que “o inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem”. Duas definições complementares para um único conceito que ainda se faz enigma e exige decifrações, ou melhor, mais cifrações. Enquanto linguagem não se pode deixar de mencionar que ela cria o ser, o ser virtual que no estado do possível tem um potencial criador. A operação que conduz ao ser é uma operação da linguagem, afirma Jacques-Alain Miller (2011, p. 4) no texto “Ler um sintoma”, aquela que aplica a psicanálise.

Podemos afirmar ainda juntamente com Lacan (1956/1998, p. 18) nos “Escritos” que “o inconsciente é o discurso do Outro”, em outras palavras, é formado pelas pegadas do Outro em nós, como se dão estas pegadas? Como se inscrevem estes traços no inconsciente? Pela soma dos efeitos da linguagem, e isso não significa que não seja este um encontro traumático da condição humana com os efeitos da linguagem, como nos lembra Ram Mandil (2005, p. 46), a propósito de Lacan. Mas de que linguagem se trata, já que ela insiste em fracassar? Tania Rivera (2009, p. 37) lança uma luz sobre o tema ao afirmar que:

Se o inconsciente se estrutura como uma linguagem, o sujeito não é linguagem, nem toma na linguagem seu lugar fixo, sua morada. Antes, a letra assinala a materialidade da linguagem, o ponto em que a linguagem “toma corpo” – pois convoca nosso corpo a comparecer no domínio da representação de maneira a perturbá-lo, acentuando as lacunas, os limites da significação. Abrindo o caminho para uma fulguração do sujeito, nas brechas onde podem se fazer a poesia, a arte – e a análise.

Apesar de se falar em estrutura com Lacan, ainda é possível uma dinamicidade no interior da estrutura. Mas como uma estrutura pode se mover? Ela é capaz de nos determinar? Sim, mas também nos põe em movimento, a trabalho. Aí reside a responsabilidade de cada sujeito pelas suas formas de gozar. Estas pegadas do Outro que constituem a nossa cadeia significante e nos inserem no campo do simbólico são as formas de determinação do inconsciente que insistem em se manifestar por algumas vias, a saber, a dos sonhos, a dos atos falhos, a das repetições e das lembranças encobridoras. Ao virem à tona as formações do inconsciente, em especial o sonho como “via régia para o inconsciente”, gesto inaugural da psicanálise, o desejo do Outro e do próprio sujeito se colocam em cena, mas a partir de uma outra cena, a de um sistema dinâmico que é familiar e infamiliar a um só tempo.

O inconsciente é esse livro do qual somos coautores juntamente com os Outros que compõem o campo simbólico. Na verdade, escrevemos o texto do Outro, desse Outro que se inscreveu em nós. A cada vez que deitamos no divã para ler essas pegadas, a escrita transita nos espaços ainda vazios do texto, sem mudar necessariamente as palavras. “Ler o que está escrito”, exprime a psicanalista e poetisa Ana Suy (2020, p. 36), “implica em perder o que não está escrito”. Ao final de uma leitura possível, a carta parece roubada, “ela estará e não estará onde estiver, onde quer que vá” (Lacan, 1956/1998, p. 27). Como afirma Tania Rivera (2009, p. 32), citando Lacan:

Para Lacan, o fato de Freud tomar o sonho como um rébus significa tomá-lo como “uma escrita” (Lacan, 1966, p. 267). O inconsciente é, portanto, o que se lê. E o que se lê é equívoco, é o que não envia diretamente a um referente, mas se endereça ao sujeito (sujeito-leitor) como carta/letra (lettre) roubada, e, no entanto, essencial: “para cada um a letra/carta é seu inconsciente” (Lacan, 1978, p. 231).

Se escrevemos o texto do Outro e a carta nos parece roubada, o que resta da experiência da análise? Resta do encontro a possibilidade de um reencontro com as novas formas com que estas palavras soam e ressoam. Às vezes mais calmas, menos rudes, às vezes em outros tons possíveis, às vezes só as habitamos no silêncio, encontramos palavras mudas e surdas. Só podemos saber que do conteúdo deste livro pouco sabemos realmente, mas quando nos percebemos em trânsito com o desejo das palavras que escolhemos reposicionar, ressignificar, rabiscar, reescrever com a nossa própria letra, descobrimo-nos sujeitos falantes, cujo gozo também se insere no campo da linguagem, nesse sentido nos descobrimos um falasser. Nessa captura do equívoco da linguagem do falasser, Clarice Lispector (1975, p. 130) poderia muito bem estar falando da posição do analista no conto “A pesca milagrosa”:

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde a isca alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler “distraidamente”.

“Tudo que não invento é falso”, dizia acertadamente Manoel de Barros. O que é linguagem sem poder criar, inventar? A linguagem cria o sujeito e este se apropria da linguagem para nela se criar. Afinal, como diz Ana Suy (2020, p. 39), “tudo é palavra antes de ser corpo”. Então, o que há na experiência analítica? Há invenção, há criação que reescreve o que se sabe e questiona o que não se quer saber. Há leituras possíveis, há sem sentido, há o corpo que se encena. Nesse aspecto do corpo, poderíamos dizer que o texto do inconsciente habita no corpo, não é em vão a expressão hoje tão corrente do sintoma enquanto acontecimento de corpo. Se Lacan (1975/2003, p. 565) fez uma breve referência ao conceito em “Joyce, o sintoma”, hoje podemos reconhecer nesse conceito algo da palavra que pudesse (ir)representar essa relação entre o corpo e a linguagem, convocando-nos à questão de sermos parasitados pela linguagem, enquanto ela se inscreve no corpo.

O que se lê deste livro chamado inconsciente é atravessado por um não querer ler algumas páginas porque delas não queremos saber, mas algumas vezes as acessamos em análise pelas vias das formações do inconsciente, em especial pelas repetições, ah as repetições estas sim não param de se escrever. Lacan (1956/1998, p. 11) chegou a reconhecer que o automatismo de repetição “extrai seu princípio do que havíamos chamado de insistência da cadeia significante”.  Não é em vão a expressão do psicanalista francês, lembrada por Jacques-Alain Miller (2011, p. 14), de que “o sintoma é um etecetera, o retorno do mesmo acontecimento”. Mas uma hora é preciso parar e ler as páginas que não queremos saber, não para habitá-las, mas para ressignificá-las, desabitando as sombras que elas nos fazem repetir. Uma hora ou outra cataploft, diz um verso de Ana Suy (2020, 78), “se a gente não para, a vida nos faz parar”.

Concordamos com Felman (2012, pp. 21-22) ao afirmar que “ler é participar do processo de vacilação do sentido, tentar ter controle sobre ele, ou chegar a um acordo com ele, nosso próprio fracasso na linguagem”. Talvez o que resta do encontro analítico seja todo o resto do fracasso da linguagem com os quais não queremos lidar. Pois, como afirma Tania Rivera (2014, p. 37), “na poesia como no sonho, a linguagem se revira e revolta, e assim se abre a algo que lhe escapa, mas nos convoca – a mim, a você, a um outro. A linguagem faz-se desejo”. Dos ditos bem-ditos ou mal-ditos dos Outros cabe a nós reabilitar a verdade no dito dos sujeitos, que passam a ser capazes de agora bem-dizer o próprio desejo e se responsabilizar pelas suas formas de gozo, nisso se dá a ética da psicanálise e coloca em cena o estatuto ético do inconsciente.

Ainda no texto “Ler um sintoma”, Jacques-Alain Miller (2011, p. 2) expõe que as propriedades do lado do analista são o bem-dizer e saber ler o sintoma e essas propriedades se transferem para o analisando, fora de toda pedagogia. O sintoma, que tem um sentido em jogo, diz Miller (2011, p. 9), é o que a psicanálise nos dá de mais real. Nesse sentido, Miller (2011, p. 12) aponta acertadamente que a psicanálise não é apenas uma questão de escuta do sentido, mas também de leitura do fora de sentido. Há uma distância entre falar e escrever e é nesta distância que a psicanálise opera, (Miller, 2011, p. 2). Talvez toda análise se defronte com um umbigo, com o desconhecido, seja do sonho, da escuta, da narrativa, de um ato falho, etc. Pois, como afirma Shoshana Felman (2012, p. 36) sobre o conceito de umbigo do sonho, “Freud chama, precisamente, de “umbigo” este acesso textual que ele não controla e cujo sentido ele não tem em plena posse”.

A posição do analista, portanto, como causa de desejo é a condição necessária para dar consistência ao discurso, na medida em que se encontra excluída dos seus efeitos de significação. Não se trata, portanto, de controlar o acesso textual ao inconsciente ou de ter posse de um sentido pleno. Apenas o amor é o signo de uma mudança de discurso. A ética da psicanálise, portanto, se propõe a escutar o texto do outro não com os nossos fantasmas e preconceitos, mas escutar o que vive e o que é do sujeito, possibilitando que suas cartas cheguem ao seu ou a algum destino na transferência.

Como adverte Freud (1919[1918]/2020, p. 198) no texto “Caminhos da terapia psicanalítica”, “recusamos enfaticamente transformar o paciente, que se entrega em nossas mãos buscando ajuda, em nossa propriedade, formar o seu destino para ele, impor-lhe os nossos ideais e, com a altivez do Criador, formá-lo à nossa semelhança, para a nossa satisfação”. Às vezes a vontade de ajudar aquele que nos chega à clínica pode esconder algo de dominação e obscenidade por parte do analista, em especial quando nos propomos a fazer o “bem” ao analisando, como se soubéssemos o que é o bem para ele ou como se existisse um bem universal da qual o psicanalista pudesse ter algum tipo de acesso. Nesse sentido, é preciso aprender a fazer silêncio diante do texto do outro, para que ele se aproprie de sua própria escritura. Afinal, o texto é o proprietário de sua escritura, é estrutura, mas ainda sim se move, pois, como dizia Lacan (1972/2001, p. 450), “não há universal que não deva conter uma existência que o nega”.

Esse texto é o meu desejo de ensaio, para usar o título do texto de Tania Rivera (2017), ensaio sobre um texto chamado inconsciente que se lê sem saber estar lendo, cujos autores são anônimos e cuja necessidade de não compreender tudo, vinda dos meus nós górdios com a filosofia, só pude aprender na experiência com a arte da psicanálise, seja como analista seja como analisanda. Nesse texto, “ensaia-se, ou seja, tateia-se um terreno que não se abarca ou compreende de imediato e nele experimenta-se um gesto que não se apresenta como ato consumado” (Rivera, 2017, p. 12).

Referências bibliográficas:

Camargo, Luis Francisco Espíndola. (2007). Sujeito do desejo, sujeito do gozo e falasser. Opção Lacaniana online, vol. 22, n.º 3, pp. 1-8.

Felman, Shoshana. (2012). Sobrevivência postal, ou a questão do umbigo. Terceira Margem, Rio de Janeiro. n. 26, pp. 17-44.

Freud, Sigmund. (1919 [1918]). Caminhos da terapia analítica. In: Freud, Sigmund. (2020). Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução Claudia Dornbsch. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, pp. 191-204. (Obras incompletas, Vol. 6)

Freud, Sigmund. (1982). Correspondência de amor e outras cartas. Edição preparada por Ernst Freud. Trad. A. S. Santos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Lacan, Jacques. (1985). Do não-senso, e da estrutura de Deus. In: O Seminário. Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 137-150. (Trabalho original publicado em 1956).

Lacan, Jacques. (1998). O seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 11-66. (Trabalho original publicado em 1956).

Lacan, Jacques. (2001) O Aturdito. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 448-497. (Trabalho original publicado em 1972).

Lacan, Jacques. (2003). Joyce, o Sintoma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 560-566. (Trabalho original publicado em 1975).

Lispector, Clarice. (1975). Seleta. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio.

Mandil, Ram A. (2005). Literatura e psicanálise: modos de aproximação. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, 12, pp. 42-48.

Miller, Jacques-Alain. (2011). Ler um sintoma. Afreudite – Ano VII, n.º 13/14, pp. 1-30.

Rancière, Jacques. (2009). O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34.

Rivera, Tania. (2009). A letra e a imagem: Gary Hill, videoarte e psicanálise. Psicologia & Sociedade [online]. 21, n. spe, pp. 31-38.

Rivera, Tania. (2014). De volta ao sonho: ensaio sobre o real e a cena. In: Ana Carolina Lo Bianco; Simone Moschen; Maria Cristina Poli. (Org.). Psicanálise, Política, Cultura. Campinas, SP: Mercado de Letras, pp. 29-38. (Coleção TerraMar)

Rivera, Tania. (2017). Desejo de ensaio. In: Rivera, T; Celes, L. & Sousa, E. Psicanálise. Rio de Janeiro: FUNARTE, pp. 11-23. (Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos)

Suy, Ana. (2020). A corda que sai do útero. São Paulo: Patuá.

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Psicóloga clínica CRP 04/66547 Atendimento online e presencial em BH  Testemunhando a transformação de vidas e narrativas.

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